Associação Piauiense
do Ministério Público

Artigo: “Audiência de Custódia” ou “Audiência de Soltura”?

 
 
Paulo Rubens Parente Rebouças
Presidente da Associação Piauiense do Ministério Público (APMP)
 
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado 554∕2011, de autoria do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), que pretende instituir a “audiência de custódia” no Brasil. A medida reproduz dispositivos de Convenções Internacionais das quais o Brasil é signatário. A finalidade da proposta é resguardar a integridade física dos presos e averiguar a necessidade ou não da manutenção da prisão em flagrante. Até aí, tudo bem. Existem convenções que estipulam a necessidade deste ato e os fins, em um primeiro momento, parecem justos.
 
Ocorre que a Audiência de Custódia, na forma como está sendo concebida, é uma verdadeira temeridade. Por se tratar de novidade apresentada como a solução para os problemas da Justiça brasileira, todos, de maneira precipitada e sem maiores ponderações, acabam por querer implantá-la imediatamente, sem uma análise mais profunda, sendo certo que tal ato pode se transformar em verdadeira fonte de tormento para o Poder Judiciário e para a Sociedade brasileira.
 
Pois bem, a Audiência de Custódia seria um ato que reuniria juiz, promotor, advogado (ou defensor público, quando o preso fosse hipossuficiente) e, eventualmente, equipe multidisciplinar, oportunidade em que seria apresentada uma série de certidões para análise em seu curso. Além disso, o ato necessariamente contaria com a presença do(s) preso(s) e dos agentes de custódia (policiais civis ou militares). Sem problemas na concepção, mas os idealizadores tupiniquins aproveitaram para afirmar que a referida audiência deveria ocorrer em 24 horas. Justificativa: hoje o magistrado deve analisar o ato de prisão em flagrante em 24 horas, logo, a audiência deve ser realizada no mesmo prazo. Como é mesmo? Hoje, um único agente, no caso, o magistrado, realiza em 24 horas uma análise meramente documental, e esse prazo se aplicaria para um ato de natureza absolutamente distinta, com a presença da própria autoridade judicante, de membro do Ministério Público, advogado (ou defensor público se for hipossuficiente), do preso e dos agentes de custódia, mediante a apresentação de uma série de certidões.
 
É de conhecimento público a carência de magistrados (reconhecida pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, o CNJ), promotores (amplamente reconhecida pelo Conselho Nacional do Ministério Público, CNMP) e defensores públicos, no país (há, inclusive, dispositivo constitucional que reconhece essa carência, mandando preencher as comarcas em 8 anos). Sabe-se que nem sempre será possível reunir todos esses agentes em um único ato, ainda mais no exíguo prazo de 24 horas. Resultado: habeas-corpus e soltura precoce de presos, sejam perigosos ou não, estupradores ou homicidas, pois logo sustentarão excesso de prazo ou inobservância de diligência essencial. Dessa forma, não se está estipulando uma audiência de custódia, mas uma audiência de soltura.
 
No Nordeste Brasileiro, juízes respondem por duas ou três comarcas, algumas distantes umas das outras, nem sempre sendo possível sua presença física para realização do ato. E aí?  Defensores públicos se revezam nos municípios do interior. Situação semelhante se repete com os membros do parquet, que cumulam até quatro Promotorias, em municípios distintos. Fazer o que? Soltar o preso, pois os modernos pensadores querem solucionar a questão carcerária com a soltura pura e simples, esquecendo que a superlotação das cadeias públicas deveria ser enfrentada com a criação de vagas e não com a soltura a todo custo como a cultura jurídica garantista apregoa.
 
O prazo de 24 horas é inexequível. Absolutamente incompreensível, diante de uma realidade cristalina. E, antes que se diga que este artigo se mostra contrário à Audiência de Custódia, digo: queremos que a audiência de custódia seja concebida para ser realizada e que não se preste, apenas, a ser mera fonte de soltura de presos. Assim, a compreensão de nossa dimensão continental e dos nossos visíveis problemas cotidianos, merecem reflexão, mormente na hora de se estabelecer um prazo tão fatal. Por que não um prazo de até 72 horas? Onde fosse possível, realizar-se-ia a audiência em 24 horas, mas, onde não fosse, os agentes teriam um prazo maior para mobilização, evitando-se a soltura gratuita de presos apenas pela não realização da audiência questionada. Isso não impediria o requerimento de liberdade provisória ou impetração de habeas-corpus nesse ínterim, nem seria impeditivo de verificação de tortura, dada a necessidade de realização de exame de corpo de delito. Por que não realizar esse ato apenas em casos de requerimento das partes, como ocorre em outros países? Preservar-se-ia a redação atual do Código de Processo Penal, inserindo-se a possibilidade de, em havendo interesse, ser requerida a audiência questionada, seja pelo Ministério Público, seja pela defesa.
 
Defendemos, pois, um prazo razoável para que a audiência seja realizável e não mera prescrição com a finalidade de soltura em massa de presos pelo país. Não é isso que a Sociedade brasileira almeja! Hodiernamente, a Audiência de Custódia não é uma realidade na nossa cultura forense. De uma hora para outra, estipulá-la, mesmo diante de um crônico quadro de fragilidade das instituições envolvidas, com um prazo exíguo de 24 horas, sabedores que a realidade de outros países usados como modelos – com dimensões menores, com índices de criminalidade insignificantes comparados aos nossos – não se mostra adequado. É um passo temerário e que merece a devida atenção. Talvez a audiência de custódia em si seja ponto de consenso, mas essa realidade desenhada demanda atenção do legislador quanto aos prazos. Ademais, o Pacto de San Jose da Costa Rica não determina a apresentação "imediata" da pessoa presa, mas, sim, que a pessoa presa seja conduzida "sem demora" à presença de um juiz (art. 70, item 5). E, conforme precedentes de Cortes Internacionais de Direitos Humanos, "sem demora" pode ser considerado "poucos dias", a ser analisado caso a caso, e não 24 horas, improrrogáveis.
 
Nos Estados Unidos, a legislação, ao se referir à Initial Appearence, não estipula prazo fatal; faz referência a "tão cedo quanto possível (realizável, exequível) depois da prisão, o suposto ofensor deve ter concedida uma audiência inicial perante um Magistrado". Essa referência parece ser mais aplicável à realidade aqui existente, mas reconheça-se que, sem que exista um prazo máximo, adequado à realidade brasileira, correr-se-ia o risco de ser inútil a realização da audiência, para os fins propostos. Assim, pensar em um prazo não tão exíguo que inviabilize a realização da audiência de custódia nem tão elástico que acabe por comprometer a finalidade da mesma é um desafio a ser discutido no âmbito do Parlamento e do CNJ. Ao se referir à "audiência de detenção" nos Estados Unidos, estipula-se prazo para a realização da audiência em 3 dias úteis (3 business days), em caso de requerimento pelo membro do Ministério Público e 5 dias úteis, em requerimento defensivo (Following the initial appearance, a detention hearing is usual/y held within three business days if requested by the U.S.Attorney's Office, and up to five business days if requested by the defense counsel).
 
Esta parte final, ao se referir à Detention Hearing nos Estados Unidos, apesar de não ser modelo absolutamente similar ao da "Audiência de Custódia" aqui proposta, mesmo por que a mesma sucede à Initial Hearing, que sequer tem prazo fixo (as soon as practible after arrest), atesta prazos muito mais condizentes com a situação efetiva da Justiça Brasileira que a previsão simplista de 24 horas, que simplesmente procura equiparar uma situação atual de análise documental exclusivamente pelo magistrado no prazo de 24 horas com a de uma audiência, com a presença obrigatória do magistrado, membro do Ministério Público, advogado ou defensor público, do custodiado e da polícia para assegurar seu deslocamento e mantê-lo sob custódia estatal, enfim, uma logística absolutamente distinta e com dimensão incomparavelmente mais complexa do que a existente hoje.
 
Outro aspecto a ser considerado é que o prazo de 24 horas proposto valeria para todos os delitos, indistintamente. Lamentavelmente, o risco de descumprimento de tão exíguo prazo na realidade brasileira pode impor solturas para crimes de Homicídio Qualificado, Tráfico de Entorpecentes, Estupro, Roubo, enfim, crimes graves que deveriam ter sua análise diferenciada. É razoável se criar uma situação de risco concreto de soltura de presos diante do crítico quadro de Insegurança Pública, sobretudo quando se trata de crimes graves?
 
O Peru, que tem a audiência de custódia a ser realizada em 24 horas, estabelece, de maneira a considerar a peculiaridade de alguns crimes, prazo de 15 dias em casos de envolvimento do custodiado em crimes de Terrorismo, Espionagem e Tráfico Ilícito de Entorpecentes, conforme segue em dispositivo citado in verbis do Código de Processo Penal Peruano:
 
ARTÍCULO 264 0 Plazo de la detención
La detención policial de oficio o la detención preliminar podrá durar hasta un plazo no mayor de quince días naturales en los delitos de terrorismo, espionaje y tráfico ilícito de drogas.
 
Tal dispositivo poderia ser adaptado aos Crimes Hediondos, previstos na lei 8.072/90, uma vez que, por definição legislativa, são crimes que merecem análise diferenciada, dada a Gravidade que representam, sem prejuízo da exigência de exame de corpo de delito para aferição de eventuais abusos policiais. 
 
Além disso, parafraseando o promotor de justiça Márcio Giorgio Carcará, do Ministério Público do Estado do Piauí, fica uma indagação aos que elaboraram esta Proposta: Na Audiência, por que não se ouve também a vítima, caso seja possível? Se o objetivo é aperfeiçoar o sistema, como ignorar que o próprio sistema acusatório prevê a paridade de armas? É só imaginar os flagrantes de tentativa de homicídio com base na lei Maria da Penha, para visualizar o prejuízo de se ouvir só o investigado. No Projeto, inexiste qualquer previsão de requerimento pelo Ministério Público em favor da vítima.
 
Percebe-se que a vítima segue ao largo das discussões da reforma. Continuamos a ignorar a vítima dos crimes cometidos pelo país a fora, a esquecer que ela existe, a ignorar sua dor e seu sofrimento. O Projeto necessita ser aperfeiçoado. Não à toa, a vitimologia é a prima pobre das ciências criminais.  
 
Por último, mais uma aberração. O depoimento prestado nesta oportunidade deve ser peça estranha à eventual instauração da ação penal. Os seus defensores entendem que, como em Juízo, o Interrogatório é o último ato processual, a utilização do Termo de audiência de custódia em uma ação penal poderia violar direitos do custodiado, vedando-se inquirição do preso sobre o mérito da imputação. Como é que é? Os defensores da audiência de custódia dizem ser ela imprescindível, uma garantia para o custodiado, mas, por outro lado, querem esconder seu conteúdo sob a simplista argumentação de ser o Interrogatório o último ato processual? Percebam, ao defenderem a proposta, seus idealizadores colocaram dispositivo expresso aduzindo que a audiência de custódia se limitará estritamente ao ato de prisão, eventual tortura, não podendo adentrar no mérito do fato sob investigação. Aí está a proteção ao eventual processado a posteriori. Se quiser, ainda tem o direito ao silêncio. Mas, ignorar seu conteúdo, esconder o “Termo de Audiência de Custódia” é absurdo.   
 
Com a devida vênia, esta visão parece ser simplista em demasia e unilateral, reduzindo o processo penal à figura do réu e seus direitos. Sem descuidar que o réu é figura proeminente do Processo Penal e que seus direitos devem ser respeitados, aquele se caracteriza por uma sequência de atos que tem por finalidade a aplicação da lei penal de forma justa, condenando o culpado ou absolvendo o inocente. Esta finalidade processual leva em conta a necessidade de um Processo com uma acusação bem definida, com contornos que permitam o pleno exercício do direito de defesa que, por sua vez, só se dará pelo Contraditório e pelo uso de todas as ferramentas viáveis pela defesa.
 
É dever do Estado e interesse da Justiça que todas as provas colhidas, sejam as obtidas na fase inquisitorial, sejam as obtidas na fase processual, sejam angariadas de forma íntegra, sem máculas, sem vícios, sem ilegalidades ou abusos que a fulminem em seu conteúdo. Se, porventura, um cidadão é preso e, na audiência de custódia, detecta-se que não se submeteu a tortura ou abusos policiais, essa informação tem relevo para o Processo também, pois, se tal constatação prejudicará ou não o eventual réu de um futuro processo penal é consequência e não da essência do ato em si, pois se assim fosse, um exame de DNA com material colhido no local do crime que apontasse para determinada pessoa como autora do crime seria de igual forma imprestável, pois poderia ser prejudicial ao futuro réu. 
 
Ora, se na Audiência de Custódia for detectada a presença de tortura, abusos ou maus tratos, essa informação é absolutamente relevante para o Processo que porventura venha a ser deflagrado, não podendo simplesmente ser ignorada, esquecida, sob pena de ser imposto ao então suspeito e potencial futuro réu, um prejuízo. Ser favorável ou desfavorável ao réu, o resultado da audiência de custódia, é consequência da atividade interpretativa do julgador e não da essência do ato em si, sendo absolutamente descabida tal alegação para fins de desentranhamento da peça. Se a audiência visa tutelar o custodiado, como agora querer esquecer, esconder seu conteúdo. Incoerência!!!! Se houvesse a possibilidade de inquirição, na audiência, sobre o mérito do fato investigado, ainda faria algum sentido a autuação do seu termo em apartado, mas se nem sequer existe esta previsão, por que estipular a exclusão do termo de audiência do Caderno Processual? Essa previsão é incoerente, contraditória e nega os fundamentos que justificam a própria audiência de custódia e a forma restrita como foi concebida. Por mais que não tenha sido essa a intenção do legislador, parece muito mais um caminho para se permitir alegações vazias de tortura por réus em Juízo que qualquer outra coisa, uma vez que haverá um documento judicial apto com constatações e declarações sobre a existência ou não de supostos excessos ou desvios dos agentes estatais e a proposta sugere ignorá-lo, ocultá-lo de autos processuais. Quanta contradição!
 
Concluindo, asseveramos que, na forma como está concebida, a audiência de custódia está sendo formatada para não ser feita, aplicando-se prazos que, muitas vezes, serão descumpridos, será uma “audiência de soltura em massa”, uma “audiência para não ser feita”. Se de um lado os juristas a justifica como um avanço em favor do custodiado, por outro procuram ocultar seu conteúdo, será uma “audiência para ser escondida”. A prudência exigiria que sua implantação fosse gradual, com prazos mais longos, até que chegue o dia em que possamos realizá-la até em menor prazo, sob pena de fecharmos os olhos para a realidade forense e as nefastas consequências sociais de mais um ato implantado sem a devida reflexão.
 
Audiência de custódia sim, desde que seja para ser efetivamente realizada, fixando-se prazo razoável, sem ocultação de seu conteúdo e levando-se em conta a realidade de um país vítima da Insegurança Pública generalizada, o campeão mundial de homicídios, onde se alastram os crimes hediondos e onde, até prova em contrário, funciona um sistema de justiça ainda precário. É hora de repensar esse ato na forma em que está sendo preconizado!
 
Finalmente, antes que alguém diga que a soltura de presos em massa é uma previsão açodada, o TJ RJ, sem que sequer exista regulamentação, já começou a soltar precocemente presos, em caso envolvendo trafico ilícito de entorpecentes, pelo singelo argumento da não realização da referenciada audiência, dentro do exíguo prazo de 24 horas e, pior, ao considerar ilegal a prisão levada a efeito, em razão da ausência de dita audiência, sequer medidas cautelares diversas da prisão foram aplicadas (HC 0064910-46.2014.8.19.0000 - sexta Câmara criminal TJ RJ Rel. des. Luiz Noronha Dantas). Que país é esse?