Muito se tem discutido sobre a ressocialização de presos no Brasil. O sistema penitenciário nacional tem sido frequentemente citado como incapaz de ressocializar presos. Estudos apontam, a propósito, para a responsabilidade estatal quanto à não ressocialização e ainda à reincidência na criminalidade.
Prevista no art. 61, inciso I, do Código Penal, a reincidência é estabelecida como circunstância agravante a ser aplicada na segunda fase de fixação da pena, após o estabelecimento da pena base. A fundamentação doutrinária para aplicação da reincidência como critério que agrava a pena aplicável é razoável.
Em tese, aquele que comete um novo delito, mesmo após ter sido processado e condenado por fatos anteriores, demonstra ter absoluto desprezo ao ordenamento jurídico, sendo necessário, portanto, a aplicação de uma maior pena, seja para fins retributivos, seja para prevenção.
Mas há quem defenda que a reincidência, ao contrário, deveria diminuir as penas. Sobretudo imputando a responsabilidade pela não ressocialização de forma exclusiva ao Estado, de maneira que o reincidente seria muito mais vítima do que responsável pela reiteração criminosa, uma vez que o Estado falhou em sua missão ressocializadora. Como agravar a pena do apenado que reincidiu, se a falha foi do próprio Estado?
Para a promotora de justiça criminal Everângela Araújo Barros, “uma visão que atribui ao Estado a culpa pela reincidência ou a exclusiva responsabilidade pela ressocialização acaba por ignorar o livre arbítrio, a individualidade de cada um, ignorando o fato de que ninguém pode impor mudança, pois, para que ela ocorra, o passo essencial deve ser do apenado, que é o desejo de querer mudar”.
Para Everângela, “o Estado pode e deve deflagrar esse processo, estimular a mudança, criar as condições para que o cidadão compreenda o mundo e as pessoas com novos olhos, mas não tem poder sobre a ferramenta essencial para a verdadeira mudança, qual seja, o desejo de mudar. A constatação óbvia, no entanto, é que o Estado tem falhado na missão de estimular esses processos”.
Sete em cada dez presidiários brasileiros voltam à cadeia
Números apurados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam para uma taxa de reincidência de 70% entre os presidiários brasileiros, alertava, em 2009, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ, ministro Gilmar Mendes. Seu sucessor, o ex-ministro do STF Cezar Peluso, reforçou o alerta dois anos depois, ao dizer que sete em cada dez presidiários brasileiros voltam à cadeia.
Esses dados, embora tenham sido questionados, dada a fragilidade dos indicadores nacionais, demonstram que o cenário não é nada bom. A título de comparação, a taxa de reincidência de prisioneiros libertados nos Estados Unidos é de 60%. Na Inglaterra, esse índice é de 50%, sedo que a média europeia é de 55%.
O juiz Ulisses Gonçalves da Silva Neto, que atualmente atua como juiz titular da Comarca de Esperantina, expressou seu pensamento sobre o tema, afirmando que “a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84) traz em seu corpo uma série de disposições voltadas ao atendimento personalizado das necessidades do apenado, conferindo-lhe, com isso um tratamento digno e, consequentemente, dando-lhe oportunidades de refletir sobre o erro cometido e a escolha por enveredar por um caminho diferente daquele que o conduziu àquela situação de encarceramento”.
“Essa é apenas uma das vertentes da ressocialização, aquela que incute ao próprio apenado a responsabilidade de buscar um meio de vida mais condizente com a vida em sociedade. Entretanto, não se pode furtar ao destaque que Estado deve propiciar ao indivíduo as condições para que isso ocorra”, observa Ulisses.
O advogado Juarez Cirino dos Santos sustenta que a reincidência deveria funcionar de maneira inversa, como atenuante, colaborando para a diminuição da nova pena. Afinal, segundo ele, a função ressocializadora da prisão não foi cumprida.“A reincidência é um atestado do fracasso do Estado”, diz.
Apesar desse ponto de vista, o STF, por unanimidade, declarou que é constitucional a aplicação do instituto da reincidência como agravante da pena em processos criminais (artigo 61, inciso I, do Código Penal).A questão foi julgada no Recurso Extraordinário RE 453000 e em habeascorpus por diversas oportunidades(HC 93411, 93851, 94361 e 94711).
Mecanismos da Lei de Execuções Penais devem ser melhor aplicados
Para o juiz Ulisses Gonçalves da Silva Neto, caso os mecanismos previstos na Lei de Execuções Penais fossem efetivamente implementados, seriam um forte vetor de ressocialização do apenado.
“A assistência material, com fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas; a assistência à saúde, jurídica e educacional; assistência social e assistência religiosa. Essas são formas de atuação específica do Estado administrador perante o preso e destinadas a criar as condições necessárias a se evitar ou mitigar a reincidência”, pontua.
O magistrado atribui essa situação à “postura omissa do Poder Executivo, detentor da maior fatia do orçamento e responsável pela implementação de toda sorte de assistência ao preso”.“A realidade do sistema carcerário brasileiro de um modo geral é a de submissão dos apenados a condições degradantes de existência no cárcere”, enfatiza.
Postura passiva do Executivo
O juiz Ulisses Gonçalves atribui a postura passiva do Poder Executivo com o sistema carcerário a dois fatores principais:
1 – A suspensão dos direitos políticos do condenado definitivo (art.15, inciso III, da Constituição Federal):Com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, o indivíduo tem suspensos os seus direitos políticos, perdendo, assim, momentaneamente, a sua capacidade eleitoral ativa. Como aquele que está em tal situação não rende votos ao governante de plantão, deixa de despertar interesse como destinatário de políticas púbicas efetivas e voltadas para a sua reinserção em sociedade;
2 – A visão da população de que o problema do sistema carcerário brasileiro é responsabilidade do Poder Judiciário:Esse segundo problema tem íntima vinculação também com o nosso sistema político eleitoral. A partir do momento em que o povo de um modo geral deixa de responsabilizar o Estado-Administração para sugerir a responsabilidade no Estado-Juiz, tal povo deixa, de igual modo, de investir na solução problema, pois referida omissão não se traduz ele em obstáculo eleitoral.
“De todo modo, o fato de o sistema carcerário se encontrar em tal situação de caos serviu de mote ao fortalecimento e desvirtuamento do denominado ‘garatismo penal’ que, sob o enfoque dos juristas tupiniquins, passou a manipular de forma voluntarista a doutrina de Luigi Ferrajoli, angariando ares de verdadeiro ‘coitadismo penal’, voltado apenas à situação individual e desconsiderando todo o tecido social”, frisa Ulisses.
Muitos são os estudos no sentido de associar o crescimento da criminalidade ao aumento das repreensões penais, como se o indivíduo que comete um crime, vislumbrando a perspectiva de permanecer por mais tempo aprisionado, resolvesse, assim, praticar mais crimes.O que não se menciona é que desde a década de 80 a política de abrandamento das penas – que visa também retirar do Estado uma responsabilidade que lhe é própria – vem ganhando forças.
No ano de 1984, ocorreu a reforma do Código Penal, com a ampliação das medidas substitutivas as crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa e com pena de até 4 anos.No mesmo ano, veio a nova Lei das Execuções Penais, facilitando a progressão de regime e criando diversos outros institutos voltados à liberação prematura do apenado.
Na década de 90, criou-se o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo com a Lei 9.099/95 e que permite a adoção das chamadas “medidas despenalizadoras” e evita o aprisionamento.Em 2011, a Lei 12.403 dificultou a deflagração da prisão preventiva. “Depois de tudo isso, os níveis de reincidência só aumentaram”, lamenta o juiz Ulisses Gonçalves.
Tratamento do Preso
O juiz Ulisses Gonçalves observa que a prisão ainda é o meio para o cumprimento das finalidades preventivas gerais e especiais da pena. Porém, segundo ele, a falta de políticas públicas sérias e direcionadas ao tratamento humano do preso fizeram com que os presídios brasileiros se tornassem “verdadeiras masmorras e vetores de criminalidade”.
“O Brasil nunca deu uma chance efetiva à prisão como pena, daí a não se poder falar que não funciona. A ressocialização é também papel do próprio apenado, mas para que possa ele desempenhar um exercício de autorreflexão e escolha é essencial que o Estado lhe confira os meios mínimos para que isso possa ocorrer. Sem isso, resta ao Poder Judiciário e ao Ministério Público o papel repetitivamente inútil de acusar, condenar e soltar, indefinidamente”, finaliza.